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José Paulo Kupfer

Muito cuidado com o novo sistema de financiamento da casa própria

José Paulo Kupfer

20/08/2019 16h53

A "revolução" prometida pelo presidente Jair Bolsonaro para o mercado imobiliário, com a liberação de linhas de financiamento corrigidas pela inflação, passa longe disso. A novidade, lançada nesta terça-feira (20) pela Caixa, pode ser vista como um triângulo em que há um lado bom, um lado incerto e um lado perigoso.

Esse é um assunto que exige o máximo cuidado de quem estiver interessado. Pelos valores envolvidos e pela duração do contrato do financiamento da casa própria, deve-se ficar alerta para as possíveis pegadinhas embutidas no novo sistema. Especialistas do mercado imobiliário estão reticentes em relação às vantagens do financiamento atrelado à inflação.

Do lado bom do triângulo, vem a possibilidade de ampliação do leque de opções de financiamento à disposição dos interessados em comprar imóveis. No lado ruim está a instabilidade da inflação que, como fator de correção das prestações, traz incertezas e riscos de inadimplência, sobretudo em empréstimos de prazo mais longo, típicos do mercado imobiliário.

Tem ainda um terceiro lado perigoso. É o que pode produzir influências negativas sobre a economia como um todo, com a criação de mais um canal de indexação de contratos à inflação. Foi a generalização da indexação, então conhecida como correção monetária, que levou à hiperinflação dos anos 80 até meados dos anos 90 do século passado.

Nunca é demais ser prudente e avaliar com o máximo cuidado as opções de financiamento imobiliário. Quando a inflação é o fator de correção dos saldos e das prestações contratuais, esses cuidados devem ser redobrados. Se a inflação está bem comportada hoje, não há garantia que continuará assim indefinidamente.

Acompanhe as explicações básicas para entender o que está em jogo no novo sistema:

Objetivo é ampliar a oferta de financiamentos

Ao regular financiamentos atrelados à inflação, com base nas variações do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), o governo abre a possibilidade de instituições financeiras ampliarem as fontes de financiamento imobiliário. A possível vantagem da maior oferta de financiamento, contudo, traz consigo a possível desvantagem de um aumento da demanda por imóveis e, em consequência, do encarecimento dos seus valores.

Na prática, são eliminadas restrições a financiamentos de imóveis com valor até R$ 1,5 milhão, regidos até agora por regras estritas do SFH (Sistema Financeiro da Habitação) e atendidos pelo SFI (Sistema de Financiamento Imobiliário), que opera financiamentos em faixas mais altas do mercado. Recentemente, a Caixa igualou os juros do SFI aos do SFH, mantendo cada sistema com seus indexadores. Também fintechs, que não captam depósitos de poupança, por exemplo, já atuam nessa faixa de mercado destinada a um público de renda mais alta.

"Nova poupança", investimento para ser mais competitivo

No SFH, os recursos para financiamento vêm de depósitos de poupança, o que atrela a correção do saldo devedor (e da prestação mensal) à TR (Taxa Referencial). Em grande medida, só grandes bancos, com sistema de captação de depósitos de poupança capilarizado em suas agências, conseguem oferecer financiamentos nessa modalidade.

A novidade introduz um novo tipo de aplicação financeira, uma "nova poupança", que renderá IPCA mais uma taxa de juros. A "velha poupança" continuará pagando TR mais 70% da taxa básica de juros (taxa Selic), quando esta estiver abaixo de 8,5%. Caso a Selic ultrapasse ele limite, os juros pagos são de 0,5% ao mês fixos.

A substituição da TR pelo IPCA como indexador permitiria a ampliação da oferta de financiamentos imobiliários porque a captação de recursos para a formação de fundos para os financiamentos passa a ser livre.  A partir da abertura de financiamentos corrigidos pela inflação, o SFH se junta ao que já é possível no SFI (Sistema de Financiamento Imobiliário), destinado ao financiamento de imóveis acima de R$ 1,5 milhão.

Veja os alertas básicos em relação à nova modalidade de financiamento imobiliário que passará a ser oferecida.

1) Será que o custo do financiamento vai cair mesmo?

Os financiamentos atuais cobram TR mais uma taxa que, na média, está perto de 8%, mas a TR está zerada. O governo acena agora com financiamentos ao custo de 2,95% a 4,95% mais a correção pelo IPCA. Como o IPCA, no acumulado em 12 meses, está em torno de 3,22%, a taxa nominal de juros desses financiamentos, neste momento, ficaria entre 6,17% e 8,17%. Menor, portanto, na ponta mais baixa, do que o que tem sido cobrado nos financiamentos corrigidos pela TR.

Especialistas em mercado imobiliário, porém, têm dúvidas se será possível oferecer financiamentos a esta taxa mais baixa. A dúvida vem do seguinte: se o Tesouro Nacional paga IPCA mais 3% em seus títulos atrelados à inflação, por que os bancos prefeririam apostar em financiamentos de longo prazo ao público, correndo mais riscos para o mesmo retorno?

Só o dia a dia confirmará ou não esse ponto. Mas, em princípio, das duas, uma, se não as duas: ou bem os custos dos novos financiamentos não serão tão menores ou bem a oferta deles não será tão mais ampla.

2) Cuidado com o sobe e desce das prestações

Qualquer que seja o sistema de amortização adotado, as prestações terão variação mensal, com correção pelo IPCA. Em relação à TR, as variações do IPCA são muito maiores ao longo do tempo. Sendo o IPCA mais instável do que a TR, também em relação ao tipo de financiamento anterior, as prestações, no novo sistema, tenderão a flutuar mais.

Isso se for considerado que a inflação não passará por choques ou flutuações mais largas ao longo do período da maioria dos financiamentos, de 20 ou 30 anos — o que é improvável. Nos 20 anos do sistema de metas de inflação, a variação do IPCA ficou, na maior parte do tempo, próxima ao teto da meta.

Só ficou abaixo do centro da meta em quatro anos (2006, 2009, 2017 e 2018). Nos dois últimos anos, o IPCA foi arrastado para baixo por uma economia muito enfraquecida, com alto desemprego, como deve se repetir em 2019. Mas, em compensação, em duas ocasiões (2002 e 2015), reagindo a crises políticas e econômicas, o IPCA voou para acima de 10%.

3) Atenção para o risco de inadimplência

A instabilidade natural do IPCA será embutida nas prestações dos novos financiamentos. Por isso, deve-se levar em consideração que, em determinados períodos, as prestações possam superar o limite prudente de 30% da renda mensal.

Uma preocupação adicional deriva da eventual ocorrência de choques inflacionários (ou de altas sucessivas dos índices de inflação). Além do aumento das dificuldades em quitar prestações, a consequente alta das taxas básicas de juros, para conter a inflação, esfria a economia e eleva o risco da perda ou redução de renda do mutuário, por desemprego ou troca de ocupação por outra de menor remuneração.

Vem à lembrança o fantasma do descasamento entre correção do valor da prestação e da renda do mutuário, que faz parte da história do SFH. Entre seu lançamento, em 1964, e mudanças expressivas em suas regras, já nos anos 90 do século passado, as prestações dos financiamentos do SFH eram mensalmente atualizadas pela correção monetária, calculada com base na inflação de períodos anteriores. Com a escalada inflacionária da época, ficou inviável manter o sistema.

Assim, as prestações passaram a ser corrigidas pelos reajustes salariais enquanto o saldo devedor continuava sendo atualizado pela correção monetária. O crescente saldo remanescente desse descasamento de correções passou a ser absorvido pelo FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais) e bancado pelo Tesouro, sem qualquer previsão orçamentária. O FCVS ainda vaga como um zumbi, assombrando bancos e governos. Depois de tanto tempo "inativo", ele carrega um preocupante esqueleto, expresso por uma dívida atualizada de R$ 300 bilhões.

Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.