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José Paulo Kupfer

Bolhas financeiras costumam começar com juros baixos. Será assim por aqui?

José Paulo Kupfer

24/09/2019 04h00

Ao longo do tempo, a história econômica, de certo modo, se resume à repetição de uma narrativa que descreve a formação de bolhas financeiras e seus posteriores estouros, aos quais se seguem períodos de correção dos desequilíbrios e recuperação da atividade, até a formação da próxima bolha. Taxas de juros baixas costumam estar na origem desse processo cíclico.

Vive-se agora, em praticamente todos os cantos do mundo, um novo momento de juros muito baixos na economia. Não surpreende que, junto com isso, ganhem corpo, mais uma vez, temores sobre a formação de bolhas. E o Brasil, desta vez, também entrou na roda das preocupações.

É que, até no Brasil, onde o padrão histórico é de taxas muito acima das praticadas no resto do mundo, os juros se encontram no nível mais baixo já registrado e mais próximos do que nunca das taxas praticadas lá fora. A taxa básica (Selic) já está em 5,5% nominais ao ano, mas a tendência é a de novos recuos até no mínimo 5%, no fim do ano.

Entre analistas, há, no entanto, crescente convicção da existência de espaço para reduzir ainda mais esse piso. Economia global mais fraca, atividade econômica doméstica sem impulso e inflação interna persistentemente abaixo do centro da meta, mesmo com o real mais desvalorizado ante o dólar, explicam projeções de Selic descendo até 4,5% em dezembro.

Isso significa que a taxa básica de juros real, descontada a inflação, a esta altura está em torno de 1,5% ao ano, podendo recuar para cerca de 0,5%. Trata-se de marca inédita, numa economia habituada, desde os tempos de hiperinflação e mesmo depois do Plano Real, com juros excepcionalmente altos.

Não serão poucos os impactos dessa nova situação no ambiente econômico brasileiro. Taxas de juros nada mais expressam do que o custo do dinheiro. Alterações em suas trajetórias, portanto, afetam diretamente os mercados de ativos, tanto os financeiros quanto os reais, caso dos imóveis.

Nas economias que adotam o sistema de câmbio flutuante, como a brasileira, quando os juros mudam fortemente de patamar, a taxa de câmbio, representada pelas cotações do dólar em reais, também tende a se alterar. Outra relação afetada é a que equilibra as aplicações em papéis de renda fixa e títulos de renda variável — estes com foco nas ações negociadas em bolsas de valores.

Dependendo do ambiente econômico do momento, alterações para cima na taxa de câmbio podem deflagrar pressões altistas sobre a taxa de inflação. Caso a inflação decole, crescem os riscos de reversão forçada da taxa de juros e, na sequência, de estouro das bolhas que se formaram.

No Brasil, pelo menos duas gerações, nos últimos 40 anos, se acostumaram com anomalias nas regras básicas de investimento. Diferentemente do que rezam as cartilhas de aplicações financeiras, juros estratosféricos permitiam aplicações em renda fixa que asseguravam, ao mesmo tempo e com baixo risco, alto rendimento e elevada liquidez.

Diante de taxas "normais", investidores serão obrigados a deixar essa zona de conforto, tendo de medir melhor e com mais cuidado seus objetivos. Caso queiram mais segurança terão de abrir mão de alguma liquidez ou de parte de rendimentos mais atraentes. Ao optar por rentabilidade maior, terão de arriscar mais, deixando de lado parcelas de segurança e de liquidez.

Os episódios de formação de bolhas de ativos, nas últimas décadas, obedeceram a um mesmo roteiro. Juros baixos, acompanhados de injeção de liquidez de recursos, para animar a atividade econômica, estão na origem do estouro da bolhas das empresas de tecnologia da bolsa Nasdaq, no início dos anos 2000 e na grande crise global, iniciada com a quebra das operações com hipotecas subprime, em 2008.

A saída da grande crise de 2008, aquela que lançou a economia global numa recessão sem precedentes desde a Grande Depressão dos anos 30, no século 20, baseou-se, mais uma vez, em maciças injeções de dinheiro pelos bancos centrais nos circuitos econômicos, acompanhadas de cortes agressivos nas taxas de juros de referência. A liquidez abundante não conseguiu fazer a economia mundial deslanchar, e, fugindo ao previsto nos textos de economia, também não empurrou a inflação ladeira acima.

No momento atual, a situação, nas economias mais ricas, é preocupante. A atividade econômica volta a perder força, em meio a uma situação nova de juros muito baixos ou mesmo negativos. O volume aplicado em papéis que rendem juros negativos se aproxima de US$ 20 trilhões, refletindo enorme incerteza em relação ao futuro econômico global.

Replicando o quadro exibido pelo resto do mundo, a economia brasileira vive uma situação também peculiar. Taxas de juros em seu ponto histórico mais baixo não conseguem dar gás à atividade econômica, que vive a recuperação mais tímida e lenta já registrada. Apesar dos juros baixos, a inflação caminha para fechar o terceiro ano seguido abaixo do centro da meta.

Seria um cenário, em teoria, propício para a formação de bolhas. Mas, se essa possibilidade não pode ser descartada, merecendo atenção permanente do Banco Central, está longe de se transformar em realidade.

Beneficiado pelos juros básicos em queda e pela compressão da rentabilidade dos papéis de renda fixa, o mercado de ações pode inspirar mais cuidados se a atividade econômica demorar para engatar uma recuperação mais vigorosa. Um descompasso entre o previsível aumento da oferta de aplicações de maior risco, com lastro em ações de empresas negociadas na Bolsa brasileira, e o ritmo de recuperação da economia poderia se mostrar problemático.

Falta força, no entanto, até para inflar bolhas. Mais por decisões de política econômica do que pela alteração na direção dos fluxos financeiros, a partir dos juros baixos, observa-se um aumento no uso de novos instrumentos de crédito. O volume de recursos alocados em papéis representativos de dívidas privadas, como debêntures, aumentou mais de 30%, nos últimos 12 meses. Bolha, porém, é outra coisa.

Esse total ainda não passa do equivalente a 10% do PIB e expressa uma espécie de substituição de fontes de financiamento. O interesse pelo mercado de capitais se deve mais à saída de bancos públicos, sobretudo do BNDES, da linha de frente dos empréstimos a empresas.

Não há, igualmente, sinais de aquecimento excessivo nos financiamentos imobiliários. Com juros menores,  o estoque de imóveis residenciais, principalmente em São Paulo, está, de fato, escoando mais rápido. Mas os preços das unidades continuam contidos e a construção residencial ainda opera bem abaixo do pico alcançado antes do início da recessão, no segundo trimestre de 2014.

Novas medidas regulatórias, previstas para 2020, que visam facilitar o acesso ao crédito, paradoxalmente, poderiam trazer pressão adicional à dos juros baixos, num eventual movimento de formação de bolhas. Mas a base deprimida em que o volume de financiamentos ainda se assenta torna a hipótese improvável.

Em julho, por exemplo, o estoque de crédito na economia mal superava a marca de 45% do PIB, índice bastante baixo em relação a outras economias. É uma indicação da existência de amplo espaço para avançar nas concessões de empréstimos sem riscos para o sistema.

Tudo isso sem falar nos spreads bancários, que se mantêm nas alturas, e na inadimplência, que ainda atinge cinco milhões de empresas. São elementos que também funcionam como fortes inibidores da formação de bolhas financeiras e de crédito.

Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.