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José Paulo Kupfer

BC queimou 10% das reservas em dólar no ano passado. Certo ou errado?

José Paulo Kupfer

15/01/2020 04h00

Ao longo do segundo semestre de 2019, o Banco Central vendeu, em pequenas doses mensais, um total de US$ 36,9 bilhões das reservas internacionais brasileiras. Com a venda desse montante, que representa quase 10% do estoque existente em julho, o total de reservas no fim do ano desceu de pouco menos US$ 390 bilhões, no encerramento do primeiro semestre, para US$ 356,9 bilhões, no fim de novembro.

O recuo leva o volume de reservas atuais ao nível registrado em fins de 2011. Fica também no limite de segurança do cálculo mais conservador do FMI (Fundo Monetário Internacional) para a fixação da posição adequada de reservas em moeda forte mantidas pelo Brasil, diante da exposição da economia brasileira no setor externo. 

Não está havendo, desta vez, tanta gritaria quanto ocorreu em 2015 e 2016, ainda no segundo mandato de Dilma Rousseff, setores do PT pediram publicamente que a presidente usasse as reservas para investimentos do governo em infraestrutura, como forma estimular a economia e enfrentar a crise que já se instalara. Na época, a equipe econômica de Dilma recusou-se a adotar qualquer medida nessa linha, enquanto economistas liberais, que faziam oposição ao governo, taxavam a ideia de "esdrúxula".

Agora, quando é o governo liberal que se vale do expediente, usando a queima de reservas para abater dívida pública, são economistas ligados aos partidos de oposição, que repelem a manobra. Em artigo no GGN, portal de notícias e análises do jornalista Luis Nassif, o economista Paulo Nogueira Batista Jr., que já foi representante brasileiro no FMI e ocupou uma vice-presidência do Banco dos Brics, nos governos do PT, lançou dúvidas em relação à redução de reservas, tidas como excessivas. "Contrariamente ao que se diz com frequência não há evidências de que o Brasil tenha de fato muitas reservas excedentes, disponíveis para manobras de diferentes tipos", escreveu ele.

Se há um tema na economia que embaralha o jogo entre as posições de ortodoxos e heterodoxos, liberais e intervencionistas, correntes de direita e esquerda na economia, esse tema é o do uso de parte das reservas internacionais. À direita, à esquerda e ao centro do espectro do pensamento econômico, é possível listar prós e contras a ideia de vender ou não vender fatias das reservas. Com o curioso detalhe de que há defensores e críticos da medida misturados em todos os lados.

Um pano de fundo peculiar explica essa aparentemente impensável reunião de forças em geral antagônicas. É que, se de um lado, manter níveis elevados de reservas em moedas fortes é um evidente seguro para momentos de crise cambial, de outro, mantê-las elevadas significa incorrer em custos fiscais não desprezíveis.

O volume de reservas mantidas pelo governo brasileiro, por diversas medidas, já esteve acima do nível de proteção considerado suficiente para enfrentar turbulências cambiais. O FMI, por exemplo, que consolidou um conjunto de métricas mais abrangentes, considera que os níveis adequados de reservas devem se situar em 100% ou 150% acima dos montantes básicos encontrados nesse cálculo.

Segundo a IFI (Instituição Fiscal Independente), ligada ao Senado Federal, as reservas acumuladas pelo Brasil superaram 100% dos valores básicos calculados pelo FMI desde o início de 2007, e alcançaram 150% em fins de 2011. Em volume de recursos, o nível adequado com 100% acima do básico, seria, em junho de 2019, equivalente a US$ 236,9 bilhões, com uma folga de US$ 150 bilhões. Mas se o objetivo fosse mirar na segurança maior, de 150% acima do nível básico, a folga não passaria de US$ 32,7 bilhões, e ela foi toda (e até mais pouco) queimada pelo Banco Central, neste segundo semestre.

No outro lado da moeda, a venda de reservas produziu uma contenção da dívida bruta do setor público. Até novembro, a relação entre o volume total da dívida e o PIB (Produto Interno Bruto) situou-se em 77,77%. Como as contas públicas  apresentaram déficit em 2019, houve um aumento, na comparação com o fim de 2018, quando a relação era de 76,5% do PIB. Mas a venda de reservas evitou que a relação dívida bruta/PIB ultrapassasse 80% do PIB já no ano passado.

Com a redução da diferença entre os juros básicos domésticos e as taxas de referência internacionais, o custo do chamado "carregamento" de reservas vem diminuindo. O movimento se acentuou em 2019 com o aumento do rendimento das reservas, causado pela queda dos juros internacionais. Ao longo do ano passado, segundo a IFI, o custo, que já chegou a 2,5% do PIB, em 2016, caiu para 0,3% do PIB.

Até a adoção da venda de reservas, as volatilidades nas cotações do dólar eram enfrentadas com a venda de swaps cambiais. Os títulos, com compromisso de recompra, que equivaliam à colocação de dólares na praça, eram, porém, negociados em reais. Ao vender dólares das reservas, o BC liquidou operações de swap, que também impactavam a dívida bruta, nos mesmos volumes. A ação casada aliviou o lado fiscal da dívida pública, mas reduziu a munição de dólares para enfrentar eventuais turbulências e crises cambiais.

A história econômica brasileira pode ser contada pelos colapsos cambiais, tão repleta que é de episódios de fuga de dólares, que resultaram em queima quase total de reservas internacionais e moratórias da dívida externa. Mais recentemente, só nos governos de Fernando Henrique Cardoso, foram duas.

Na primeira, com a sucessão de crises de dólares no México, na Ásia e na Rússia, as reservas brasileiras praticamente se esgotaram ao longo do segundo semestre de 1998, desaguando em mudança, no atropelo, em janeiro de 1999, do regime de câmbio fixo, que ajudou a sustentar a queda de inflação, nos primeiros tempos do Plano Real, pelo câmbio flutuante. A outra, em 2002, na passagem para Lula, deixou para o novo governo reservas insuficientes, de US$ 17 bilhões, sem considerar US$ 20 bilhões aportados pelo FMI.

Aproveitando a onda de valorização das commodities agrícolas e minerais exportadas pelo Brasil, sobretudo para uma China em fase de crescimento explosivo, Lula recompôs as reservas brasileiras, mantendo posições robustas de dólares. A política de formação e manutenção de volumes elevados de reservas cambiais fez com que as crises externas deixassem de frequentar a economia brasileira, mesmo com o crash de 2008 e suas consequências nos anos seguintes.

Mas a polêmica sobre a conveniência de queimar reservas excessivas, como forma de reduzir a pressão fiscal ou impulsionar diretamente a economia, nunca deixou de existir. Agora, quando a saída de capitais externos, de US$ 44,7 bilhões, em 2019, atingiu o ponto mais alto da série histórica, iniciada há 38 anos, o debate promete ser ainda mais aceso.

Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.