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José Paulo Kupfer

Indústria paga o preço de 40 anos de políticas erradas, diz diretor do Iedi

José Paulo Kupfer

04/02/2020 04h00

Julio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Iedi – Foto: Luciana de Francesco/Arquivo Iedi

Depois de um respiro em 2017 e 2018, quando cresceu 3,5% no acumulado dos dois anos, a indústria brasileira voltou a decepcionar, em 2019. A produção industrial, seis anos depois do início da forte recessão iniciada em 2014, continua mais de 10% abaixo do nível anterior à crise.

Investimentos insuficientes têm tornado a indústria brasileira incapaz de acompanhar a evolução do setor industrial ao redor do mundo. Mesmo dentro da economia doméstica, a indústria vem perdendo terreno desde que sucessivas crises econômicas, a partir de meados dos anos 80, minaram o dinamismo que a impulsionara nas três décadas anteriores.

Hoje, como um todo, a participação da indústria no PIB (Produto Interno Bruto), conforme dados da CNI (Confederação Nacional da Indústria), se limita a cerca de 20% do PIB, abaixo do que representava em 1947 e muito longe do ponto máximo observado em meados dos anos 80, quando chegou a 45% do PIB – participação acima da registrada atualmente pela indústria chinesa no PIB da China. O declínio vem de longe: nos últimos dez anos, a participação da indústria de transformação, principal segmento do setor industrial, na economia brasileira, caiu de 16% do PIB para 10%.

"A indústria brasileira, atualmente, tem dinamismo muito menor, capacitação muito menor e produtividade muito menor do que o resto do mundo", diz Julio Sergio Gomes de Almeida, diretor executivo do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), entidade privada, fundada e mantida há 30 anos por uma elite de empresas industriais de capital nacional.

Na entrevista a seguir, Julio Gomes de Almeida descreve os principais motivos que levaram ao presente definhamento da indústria brasileira e enumera as medidas capazes de reverter esse quadro negativo:

*

O Brasil é um ponto fora da curva no conjunto da indústria em termos globais?

O Brasil é, sim, um ponto fora da curva. A nossa indústria está sofrendo mais do que a de outros países. Nos outros países, o setor vem apresentando desenvolvimento até bem razoável, inclusive nos países desenvolvidos, em que a indústria já é madura, como no caso da Alemanha. Só mais recentemente, especificamente em 2019, a indústria global sentiu um baque mais forte, numa consequência da guerra comercial Estados Unidos-China.

O que significa a indústria brasileira ser "um ponto fora da curva"?

Significa que a nossa indústria, atualmente, tem dinamismo muito menor, capacitação muito menor e produtividade muito menor. A queda aqui é mais forte do que no resto do mundo. E, se ficar como está, a diferença tende a aumentar. A distância hoje é tal que, apenas para reduzir a diferença, a indústria brasileira teria de avançar mais rápido.

Por que a indústria brasileira se descolou para pior do resto da indústria mundial?

A indústria brasileira já vinha mal há muito tempo e a situação piorou ainda mais com a recessão interna, a partir de 2014. Estamos pagando o preço da adoção de políticas erradas há muito tempo. São 40 anos nos quais a indústria brasileira cresce pouco e foi se atrasando em relação ao resto do mundo. Antes disso, ao contrário, entre os anos 50 e meados dos anos 80, a indústria brasileira experimentou uma ascensão espetacular.

Por que as inúmeras políticas industriais tentadas no Brasil, nestes 40 anos, acabaram não dando certo?

Porque se transformaram em políticas compensatórias. Tentaram compensar a indústria dos impactos negativos de políticas cambiais e de baixo crescimento econômico. No fim, todas deixaram de lado o caráter de indução do desenvolvimento industrial para compensar barreiras levantadas pela política econômica contra a indústria.

O que interrompeu a ascensão da indústria?

O freio coincide com a sucessão de crises que passa a assolar a economia brasileira. A forma como se procurou enfrentar os problemas causados pelo avanço da dívida externa – e, mais tarde, no lado fiscal – atropelou e brecou o dinamismo industrial. Surge daí uma economia sempre de freio de mão puxado e, ao mesmo tempo, perigosamente inflacionária.

Mas outros setores não sofreram com os mesmos problemas?

A combinação de baixo crescimento e inflação alta, característica da economia brasileira em metade dos últimos 40 anos, causou mais danos à indústria. Derrubou o espírito empreendedor do empresário industrial e, em consequência, seu ânimo para investir. O empresário abraçou a cautela até as últimas consequências. Sem consumo e sem investimento, a indústria começou a declinar.

E depois da crise da dívida e da superação da hiperinflação, com o Plano Real, não era para a indústria voltar a investir e crescer?

O Plano Real veio com taxas de juros muito altas e valorização cambial, dois venenos poderosos contra o desenvolvimento industrial. Os primeiros anos do Plano Real e os subsequentes também coincidem com o início da escalada industrial da China, o que tirou do Brasil posições importantes na destinação de investimentos estrangeiros diretos na indústria.

A China também tomou espaços da indústria brasileira no abastecimento de produtos industriais, sobretudo na América Latina, e até nos Estados Unidos. Mesmo no Brasil, com a onda de valorização cambial, que fez parte da estratégia para enfrentar a crise de 2008, a China tomou espaços da indústria local.

Depois disso, com a crise de grandes proporções nas contas públicas, que resultou na profunda recessão dos últimos anos, medidas fiscais adversas levaram a indústria ao chão.

Toda essa análise remete a causas externas à atual situação de definhamento da indústria. Por dentro da indústria, o que provocou a fragilidade e o atraso atuais?

Historicamente, os momentos de dinamismo da economia brasileira – e com eles o da indústria – sempre acompanharam os momentos de dinamismo da economia internacional. Não é possível analisar a trajetória histórica da indústria brasileira sem considerar os elementos do contexto externo a ela.

De todo modo, é preciso observar que a indústria brasileira ainda é bastante diversificada e seu atraso, embora geral, não é o mesmo em todos os seus segmentos. Há empresas que se mantêm no topo do desenvolvimento global. Mas, no miolo da indústria, principalmente no grande grupo das pequenas e médias, o atraso é grande e evidente. Esse longo período de 40 anos de crises foi gerando um investimento claramente insuficiente para manter um padrão de nível mundial.

O que teria levado a esse investimento insuficiente na indústria?

A indústria foi vítima da política econômica adotada desde o Plano Real, que privilegiou o lado monetário no esforço de manter a inflação sob controle. A taxa de juros sempre muito elevada, o que só está mudando agora, é um condicionante de grande peso no desestímulo ao investimento pelos empresários industriais. Os juros altos também favoreciam taxas de câmbio mais valorizadas, colaborando para abrir flancos para o ingresso de importados e dificultando a abertura de mercados externos.

Com isso, não só o empresário industrial ficou na retranca, mas também procurou diversificar seus negócios e foi saindo da indústria. Quem dirige hoje as indústrias, salvo exceções, são executivos profissionais, não são mais os antigos donos. É muito difícil, nos dias de hoje, encontrar um empresário industrial, sobretudo nacional, que não tenha um braço no comércio, no agronegócio, na mineração ou no mercado financeiro.

Que problemas o baixo investimento acarretou?

Um deles foi a descontinuidade de segmentos dentro da própria indústria. Ao investir menos do que deveria, a indústria também fica condenada a uma produtividade menor. Muita gente gosta de atribuir a produtividade baixa à baixa qualificação do trabalhador. Sim, isso é fato e prejudica a produtividade, assim como o excesso de regulação, que trava a economia em geral e, em particular, a indústria. Mas se não investir, se não renovar máquinas e processos, ainda que os trabalhadores fossem qualificados e a organização da produção fosse mais moderna, com menos regras e com regras mais simplificadas, a produtividade não conseguiria aumentar.

Tem como sair disso?

Se continuar como está, não tem. São 40 anos construindo esse fosso. Contando 2019, são seis anos consecutivos de declínio da produção industrial.

Significa que a indústria brasileira está condenada a definhar?

Não é isso. Mas é considerar que não tem como sair muito desse patamar em que se encontra, esses 10% do PIB que o setor industrial representa hoje. Não se pode esperar da indústria um dinamismo muito maior ou um crescimento expressivo. O setor no mundo caminha na trilha da chamada economia 4.0, com ênfase na digitalização, e o Brasil está cada vez mais afastado desse caminho. Essa situação só seria revertida se fosse implantado um programa todo especial de recuperação do dinamismo industrial.

Como seria esse programa?

Pensando numa indústria melhor, mais competitiva, daqui a uns dez anos, teria de, em primeiro, continuar com a política de juros baixos e com a taxa de câmbio minimamente desvalorizada ou, pelo menos, não tão valorizada.

Em segundo lugar, teriam de ser retiradas as desigualdades tributárias que afetam a indústria. A indústria é excessivamente taxada, em cerca de 30% do que produz, em média. O resultado final é que o custo de produção na indústria fica alto. A indústria precisa ser aliviada da grande carga tributária que pesa sobre ela. O efeito dos impostos no custo industrial derruba a capacidade do produtor local de concorrer com importações e lhe retira capacidade de competir em mercados externos. Voltar, por exemplo, a adotar regimes de depreciação acelerada do capital, o que não gera subsídios, mas reduz a carga tributária, seria uma medida importante.

Seriam necessárias outras medidas?

Teria de ser desenhado também um programa de atualização do maquinário industrial. Nosso parque industrial, em média, tem 12 anos de idade. Isso é média, deve ter empresa operando com equipamentos de mais de 20 anos e, claro, empresas com instalações mais modernas, com até oito anos de uso, que é o padrão dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Mas a média brasileira é alta.

Também ajudaria a reduzir nosso atraso em relação ao resto do mundo se houvesse incentivos, linhas especiais de financiamento, ao investimento em capacitação tecnológica, superando a estagnação do investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), que há muito tempo mal chega ao equivalente a 1% do PIB. E, pensando na indústria 4.0, mas não só nela, teria grande impacto um programa amplo de extensão industrial, de transmissão de conhecimento e treinamento de executivos e trabalhadores da indústria, à maneira da bem sucedida extensão rural, que foi decisiva no desenvolvimento do agronegócio brasileiro.

Já existe um programa com esse objetivo, chamado "Brasil Mais Produtivo", cujas bases foram lançadas ainda no governo Dilma, pouco antes de Michel Temer assumir o governo, com o impeachment de então presidente. Temer oficializou o programa, mas sua ação só chegou até agora a cerca de três mil empresas. Informações da recentes da imprensa dão conta de que o governo Bolsonaro pretende renovar e ampliar o programa. É um caminho.

 

 

Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.