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Ajuste fiscal está feito, tamanho do Estado devia ser foco, diz pesquisador

José Paulo Kupfer

18/09/2019 04h00

A sensação que se tem, com os cortes de verbas e o contingenciamento de recursos para cumprir a meta fiscal de 2019, é a de que os gastos públicos chegaram ao limite. Diante da proposta orçamentária oficial para 2020, que reserva quantias tidas como insuficientes para manutenção da máquina pública, e classificadas como irrisórias para os investimentos do governo, a impressão que fica é a de que a escassez de recursos públicos passou dos limites.

Todo esse esforço de contenção de gastos tem consequências fortemente negativas para a amplitude e a qualidade dos serviços públicos. Sua pretensão declarada é a de quebrar a tendência explosiva da trajetória da dívida pública, estabilizando-a em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Saindo do equivalente a pouco mais de 50% do PIB, há seis anos, ela se aproxima de 80% do PIB, posição muito acima da exibida por outras economias emergentes. 

Cálculos elaborados com base na trajetória de queda da taxa básica de juros, e nas perspectivas de crescimento econômico a partir de 2020, contudo, mostram outra realidade. Com a redução acentuada do custo do endividamento público, a posição do resultado primário suficiente para estabilizar a dívida pública também está em queda.

Para o economista Manoel Carlos Pires, pesquisador do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas) e professor da UNB (Universidade de Brasília), já é possível perceber que a dívida pública se estabiliza mesmo com déficits fiscais. Por exemplo, com crescimento de 1,8% ao ano e taxa Selic de 4,75% anuais, um déficit primário de 0,3% do PIB estabilizaria a dívida pública.

Na hipótese de um crescimento maior, 2% ao ano, e de juros básicas mais baixos, de 4% anuais, até mesmo um déficit primário de 1% do PIB seria suficiente para sustentar a estabilidade da dívida. O déficit primário acumulado em 12 meses encontra-se em 1,4% do PIB.

Com base nessas simulações, Pires, especialista em questões fiscais, que é coordenador do Observatório de Políticas Fiscais do Ibre/FGV, considera ser possível dizer que o ajuste fiscal necessário para estabilizar a dívida pública está resolvido. "A média desses cenários [de estabilização da dívida pública] aponta um resultado primário deficitário de 0,44% do PIB", escreveu Pires no artigo "Política fiscal reloaded", recentemente publicado no Blog do Ibre, mantido pela FGV.

Na entrevista a seguir, Pires explica por que considera que o ajuste fiscal está equacionado e por que, em razão disso, o debate dos problemas fiscais está focando em alvos errados:

Como é possível concluir que a dívida pública está no caminho da estabilização e que, portanto, o ajuste fiscal já foi praticamente alcançado, se o governo diz que precisa cortar programas sociais, suspender bolsas de estudos, correr risco de não emitir passaportes e atrasar restituições do Imposto de Renda?

Os juros básicos da economia estão caindo, vão cair mais e deveriam estar abaixo do que projetam no mercado. Nesse cenário em que os juros caem, é possível reduzir o resultado final de equilíbrio. É necessário um esforço fiscal menor porque o custo do endividamento também está caindo.

Há um segundo elemento: a diferença entre o resultado fiscal que o governo divulga e o déficit estrutural, no qual são expurgadas as flutuações da economia no curto prazo, as receitas e despesas extraordinárias, permitindo mensurar a posição fiscal do governo de acordo com a situação fiscal de longo prazo.

Nas estatísticas do governo, o déficit primário chega hoje a 1,4% do PIB [Produto Interno Bruto]. Mas, se o resultado estrutural for tomado como base, o déficit fiscal já estaria muito próximo daquele que equilibra a dívida pública.

Quais seriam esses esses números?

A SPE (Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia) está calculando hoje o déficit estrutural em 0,7% do PIB. Aqui no Observatório de Política Fiscal, do Ibre/FGV, calculamos que o déficit estrutural que estabiliza a dívida está em 0,2% do PIB — por volta de R$ 14 bilhões.

A questão é que a economia precisa crescer, para que esse crescimento resulte em acréscimo de receita e se materialize no indicador fiscal, o que não acontece desde 2016. De qualquer forma, a nossa posição fiscal de longo prazo já é condizente com essa situação de equilíbrio da dívida pública.

Qual a consequência prática dessa situação melhor do que os números conhecidos parecem indicar?

Isso já abre um pouco de espaço para uma discussão mais racional da política fiscal. Seja como um elemento para acelerar a recuperação da economia, seja como elemento para o conjunto de reformas que devemos discutir. O principal nesse sentido é chamar a atenção para o fato de que o governo já recuperou a capacidade de manter uma política fiscal sustentável.

A consequência é que não é preciso fazer reformas fiscais tão drásticas como as que estão sendo anunciadas como necessárias. No dia a dia, é possível administrar a política fiscal sem a pressão de fechar um enorme buraco. Esse buraco, se existiu, praticamente já não existe mais.

Essa situação fiscal mais favorável foi obtida, fundamentalmente, com a queda da taxa de juros?

Esse foi o principal efeito da redução da taxa Selic. Mas, como escrevi no artigo, o controle da dívida pública no longo prazo depende de uma combinação de variáveis macroeconômicas, como o resultado de caixa do governo ou superávit primário, taxas de juros incidentes sobre a dívida pública e crescimento econômico.

Por que, então, está cada vez mais acirrado esse debate sobre o ajuste fiscal, principalmente sobre o teto de gastos, se o problema está equacionado?

Estamos entrando num segundo debate que reúne temas que discutem muito mais o papel do Estado na economia. A impressão que tenho é que se trata de uma estratégia. Vincular essa discussão a uma situação pior do que a real, se fosse verdade, exigiria medidas de ajuste mais fortes.

O governo estaria procurando acirrar o conflito distributivo na sociedade, forçando a definição de perdedores e ganhadores com o ajuste fiscal, para avançar na pauta da redução do tamanho do Estado?

É exatamente isso que o governo está tentando fazer com o debate sobre flexibilizar ou não o teto de gastos, forçando o Congresso a entrar nesse jogo. Pintar a situação pior do que ela é também ajuda nessa narrativa.

Nesse meio tempo, quem está desempregado ou passando aperto com a economia travada e estagnada acaba, digamos assim, imolado no altar da redução do tamanho do Estado?

O risco que corremos é, por um lado, o que já está acontecendo: conter políticas públicas que sempre funcionaram bem –políticas de ciência e tecnologia, distribuição de bolsas, etc. De outro, é errar na mão na definição e no desenho das reformas necessárias, focando não no mérito das reformas, mas no volume de recursos que seria possível economizar com elas. Isso é errado porque, agora, não é preciso mais perseguir metas mais duras. O que a economia está exigindo agora é um conjunto de ajustes mais finos.

Que ajustes mais finos seriam esses?

Alguns debates nesse sentido precedem até mesmo a discussão do ajuste fiscal que começou em 2015. Por exemplo, a reforma administrativa. Muitos entendem que esse seria o próximo passo depois da reforma da Previdência. Tem quem entenda que essa reforma deve mirar na redução de custos e não se preocupa em discutir o que botar no lugar.

É o caso clássico da estabilidade do servidor público. A estabilidade tem um sentido, um sentido de longo prazo, que é o de manter uma continuidade, uma permanência nas atividades do serviço público. É possível pensar em aprimoramentos das regras em lugar de, simplesmente, advogar pela sua extinção. Esse seria um ajuste draconiano de quem está menos preocupado com o bom funcionamento do Estado.

Esse tipo de posição não leva a nada porque é muito difícil imaginar que um governante vai permitir a criação de um sistema que gere instabilidades entre médicos, professores ou policiais militares, profissionais que desempenham atividades essenciais para a população. A reforma administrativa deveria ser encarada como uma medida de melhoria de gestão, não exatamente de ajuste fiscal.

O debate sobre o teto de gastos não é, no fim das contas, o debate sobre o tamanho do Estado?

Sim, mas a ironia é que os indicadores estão levando à conclusão de que o problema fiscal, do ponto de vista da sustentabilidade da dívida pública, foi resolvido antes de o teto de gastos se tornar uma efetiva restrição.

Pode-se dizer, resumindo tudo, que o ajuste fiscal está feito e a discussão da questão fiscal está errada?

A discussão agora é sobre a reforma do Estado. Essa discussão está camuflada no debate do ajuste fiscal. O ajuste está encaminhado, e o debate agora é sobre a velocidade com a qual se pretende reduzir a dívida pública.

Do ponto da recuperação da confiança de empresários e investidores, do ponto de vista do que o mercado olha, é suficiente o ajuste estar bem encaminhado?

Do ponto de vista do que o mercado olha, o problema está resolvido. Algumas indicações disso podem ser encontradas, por exemplo, quando o presidente Jair Bolsonaro diz que vai mexer no teto e o mercado nem balança. Outro sinal veio da indiferença com que o mercado recebeu o Orçamento insustentável para 2020 que o governo enviou ao Congresso.

Além disso, os títulos da dívida pública estão se valorizando. Títulos longos já valorizaram 70% em 12 meses e 40% só neste ano. Que mercado valoriza um ativo se há tanto risco em torno dele? O mercado já entendeu que a questão está encaminhada. O debate agora deveria ser outro.

Quais os riscos de continuar com o debate errado?

O debate deveria ser sobre o tamanho que a sociedade quer para o Estado, como ele poderia funcionar melhor e o modo mais eficiente de fazer a economia crescer mais e mais rápido. Fora disso, os riscos são muitos.

Em primeiro lugar, o debate errado não é favorável ao crescimento da economia. Em segundo lugar, a agenda de fadiga de reformas contribui para alimentar extremismos políticos. Além de não aliviar tensões com crescimento, a tendência é acirrar o conflito distributivo. Aqui, podemos ter um duplo problema: de um lado, o acirramento do próprio conflito distributivo, e, de outro, a dificuldade de encontrar caminhos eficazes para sua solução ou, pelo menos, sua distensão.

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Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.


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