Nova Previdência aprovada agora vai ficar velha em pouco tempo
José Paulo Kupfer
22/10/2019 19h25
Uma boa reforma previdenciária precisa levar em conta a dinâmica demográfica, o problema fiscal e o problema social. Além disso, precisa considerar as mutações aceleradas no mundo do trabalho. A reforma da Previdência aprovada nesta terça-feira (22) atende ao primeiro quesito e, em parte, ao segundo.
Mas não atende tanto quando seria de se desejar ao critério do atendimento da proteção social dos mais vulneráveis. E passa ao largo das mudanças nas relações de trabalho, que têm impacto direto na arrecadação previdenciária. Sem garantia de arrecadação crescente, ou pelo menos estável, a sustentação da Previdência no tempo tende a ficar comprometida.
Como é pretensão de toda reforma previdenciária, a patrocinada pelo governo Bolsonaro e conduzida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, objetivava aumentar a arrecadação, alargando o tempo de contribuição, e dificultar o recebimento do benefício, elevando a idade mínima elegível. Além disso, a reforma de Guedes também pretendia reduzir o valor dos benefícios e restringir o contingente de beneficiários.
O Congresso aparou as pretensões de Guedes, limitando a economia de recursos públicos prevista com a reforma. Do R$ 1,2 trilhão, em dez anos, da proposta cheia do governo, a reforma aprovada assegurou corte de R$ 800 bilhões, em dez anos. Essa economia configura redução considerável de despesas sobre o valor estimado na proposta do governo de Michel Temer, em torno de R$ 500 bilhões.
Mas, se é uma redução necessária para um programa de reequilíbrio das contas públicas, não pode ser tida como suficiente para tanto. Há cálculos que apontam gastos previdenciários de R$ 5 trilhões, em dez anos. Reforma da Previdência sozinha, como se sabe há tempos, não faz o verão do ajuste fiscal.
A adoção de uma idade mínima (de 65 anos, para homens, e 62, para mulheres) é a grande conquista da nova Previdência. Esse requisito atende à inevitável pressão demográfica em curso acelerado no país. Assim como a idade mínima estabelecida está de acordo com a sobrevida esperada, no Brasil, de um aposentado, atendido por um regime de repartição, o tempo de contribuição, entre 15 anos e 20 anos, é uma exigência razoável para a formação de um poupança que reverta em aposentadoria anos depois.
Também foi correta a exclusão dos muito vulneráveis das alterações restritivas impostas pela reforma. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), programa assistencial para idosos e pessoas com deficiência em extrema pobreza, é uma rede de proteção humanitária com a qual sociedades decentes não podem deixar de arcar.
Outra conquista veio com a equiparação quase completa dos regimes próprios de servidores públicos aos do regime geral, vinculado ao INSS. Ficou faltando, porém, incluir os militares, assim como estados e municípios no conjunto de reformas. A exclusão dos militares, que, além de um regime especial, acabaram premiados com uma reestruturação de carreiras que eleva os gastos públicos, vai na direção contrária da busca apregoada pelo governo da eliminação de privilégios.
Faltou também incluir os regimes previdenciários de estados e municípios na reforma ou, pelo menos, em algum texto que corresse em paralelo, mas no mesmo tempo, com a mudança no INSS e no regime dos servidores federais. Principalmente do ponto de vista do problema fiscal, trata-se de um enfraquecimento dos efeitos da reforma.
A maratona da reforma da Previdência, da concepção no governo até a aprovação no Senado, termina com a percepção de que uma nova reforma terá de ser submetida ao Congresso em alguns anos. Com a redução de gastos possível, a nova Previdência trata de um problema antigo: como assegurar o financiamento de um contingente crescente de inativos, com vida mais prolongada, por um número menor — pela rápida queda nas taxas de natalidade — de trabalhadores ativos contribuintes.
Já o problema previdenciário de um futuro não tão distante é outro: como assegurar a contribuição de trabalhadores cada vez mais autônomos e independentes, não só sem vínculos mais formais de emprego, mas também sem local e horário fixos de trabalho.
Esse problema, na verdade, já é do presente. Levantamento do economista José Roberto Afonso, referência brasileira em assuntos fiscais, mostra que, em 30 anos, o número de empregados com carteira assinada e remuneração acima de dez pisos previdenciários, contribuintes compulsórios do INSS, caiu de mais de 30% do total para menos de 2,5%. O fenômeno se deveu à migração de empregados formais para a camuflagem de pessoas jurídicas prestadoras de serviço, que dão contribuição mínima — quando não nula — para a Previdência.
Preocupada principalmente com a redução dos gastos públicos, faltou à reforma que agora entra em vigor uma estrutura mais flexível, capaz de permitir adaptações naturais ao longo do tempo. Para isso, precisaria ter se organizado sob o formato de pilares, que, a um só tempo, atendesse a necessidades de proteções diversas, sem perder o sentido de conjunto.
Seriam três os pilares em que uma nova Previdência, com seus múltiplos objetivos, deveria se estruturar. Um deles, com caráter assistencial, atenderia aos mais pobres, com baixa inserção no mercado de trabalho formal ao longo da vida.
Um outro, voltado para as camadas de renda média da população, seria o pilar contributivo. A contribuição está na base do sistema previdenciário de repartição, o mais indicado para países com elevado grau de pobreza e renda concentrada, no qual os trabalhadores na ativa financiam a aposentadoria dos que já se retiraram do mercado de trabalho.
O terceiro pilar, individual, consistiria num regime de capitalização, voluntário e limitado a pessoas com renda mais elevada. Seu objetivo, além de aliviar o lado fiscal, permitiria elevar os proventos da aposentadoria além dos limites estipulados no pilar da repartição, para quem tivesse capacidade de poupar recursos do seu orçamento cotidiano .
Se ainda não surgiu uma resposta pronta e completa para a resolução dos novos desafios previdenciários, com os quais a nova Previdência brasileira daqui a pouco se verá frente a frente, cresce a convicção de que também não existe uma única saída para o problema. As melhores apostas, mundo afora, apontam para soluções híbridas, mesclando contas individuais e forte regulação, a partir de determinado nível mais alto de renda, com aportes estatais em conjunto com contribuições de empregados, e programas de renda mínima para os estratos inferiores de renda.
Sobre o Autor
Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.
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Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.