Recordes do dólar vêm de pressões estruturais, não de declarações de Guedes
José Paulo Kupfer
26/11/2019 15h45
Não são as declarações de cunho autoritário e antidemocrático do ministro Paulo Guedes que estão fazendo a cotação do dólar escalar novos recordes nominais. Se lembranças sombrias do AI-5, sacadas pelo ministro em discursos e entrevistas, nesta segunda-feira (25), nos Estados Unidos, estivessem entre as causas principais para a alta da moeda americana, possivelmente não teriam fôlego para ir muito longe.
O problema é que os operadores do mercado cambial se convenceram de que a escassez de dólares, causa primária da alta nas cotações, tem raízes mais estruturais. A falta de dólares e a consequente elevação da cotação da moeda americana refletem o menor crescimento do comércio internacional e as crises econômicas em países chave para as exportações brasileiras. São esses fatores que estão afetando, negativamente, as contas da economia brasileira com o exterior.
Emergiu a convicção de que a trajetória das contas externas é a de aumento significativo dos déficits em conta corrente. Quando os déficits em conta corrente tendem a aumentar, as cotações do dólar tendem a subir. A tendência ganha força quando as entradas de moeda forte, reduzidas pelo canal comercial, são potencializadas pela retração de ingressos pelo canal do mercado financeiro. É essa combinação adversa que está provocando, no momento, escassez de moeda americana e, em consequência, recordes das cotações nominais do dólar.
A fala desastrada de Guedes pode ter contribuído para a alta da taxa de câmbio, mas menos pela afirmação política em favor de um mecanismo da ditadura. Ao anunciar um "novo mix" de política econômica, com juros mais baixos e câmbio mais alto, o ministro passou a mensagem de que o Banco Central não interviria para conter a alta das cotações, ajudando a lançar o dólar ainda mais para cima.
Por enquanto, as intervenções do Banco Central, que já estão se intensificando, seguem a cartilha. A ideia é fornecer dólares para quem está necessitado, mas não a ponto de queimar reservas internacionais sem limites. O objetivo do BC, até aqui, tem sido o de oferecer moeda forte, com compromissos de recompra à frente, mantendo posições de reservas tanto quanto possível inalteradas no médio prazo.
As projeções para os saldos da balança comercial, por onde chegam os principais fluxos de dólares, são francamente negativas. Nos modelos do professor Affonso Celso Pastore, um dos mais experientes e respeitados economistas brasileiros em atividade, ao dólar de R$ 4,20, mantidas as restrições hoje vigentes no comércio exterior, que determinam preços contidos para as principais commodities exportadas pelo Brasil, o saldo da balança comercial fechará 2019 em US$ 40 bilhões e descerá a US$ 35 bilhões, em 2020. Quando se comparam esses números com os US$ 60 bilhões de saldo comercial obtido em 2018, dá para perceber o tamanho da reversão — e da seca na torneira de dólares.
Em razão das perdas na balança comercial, fenômeno que pode ser quase inteiramente creditado a quedas nas exportações — com notável destaque para as vendas de soja à China e automóveis à Argentina —, o déficit em transações correntes avança para o sinal amarelo. Nos 12 meses encerrados em outubro, o déficit somou US$ 55 bilhões, equivalentes a 3% do PIB. No mesmo período, em 2018, o déficit foi de US$ 38 bilhões, ou 2% do PIB.
Na margem, considerando a média anualizada dos últimos três meses, o buraco nas transações correntes já chega a 4% do PIB. Se, de fato, a economia experimentar uma aquecida, um previsível aumento das importações, hoje ainda acomodadas, promoverá uma nova piora na situação das contas correntes.
O desabamento do saldo comercial e o aprofundamento dos déficits em transações correntes já seriam suficientes para puxar para cima as cotações do dólar, mas há também outras pressões pesando sobre a taxa de câmbio. As saídas de dólares são igualmente recordes.
Até os primeiros dias de novembro, US$ 21 bilhões saíram do país. É o maior volume registrado desde 1999, ano de mudança do regime cambial e de introdução do sistema de metas de inflação, quando a fuga de moedas fortes somou US$ 16 bilhões. A tendência, segundo boa parcela de especialistas, é de elevação nos volumes de saída de dólares.
Houve ainda frustrações com a expectativa de ingressos de recursos externos com os leilões em área da cessão onerosa do pré-sal. Sem lances de petroleiras estrangeiras, não só grande parte dos dólares esperados não ingressaram, como os investimentos estimados com o arremate de áreas por estrangeiros furaram completamente.
Não deixa de ser notável que restrições externas se apresentem, mesmo com a economia ainda exibindo amplas faixas de ociosidade. Até que ponto essa ociosidade impedirá a transmissão das altas do dólar aos preços internos e daí à inflação é uma interrogação ainda sem resposta. De todo modo, não custa ficar preparado para uma eventual freada no atual ciclo de corte dos juros básicos.
Estão em marcha, para resumir, forças que atuam para manter as cotações do dólar pressionadas para cima. Declarações inoportunas de ministros podem colaborar para reforçar tendências, atrasos em reformas idem, assim como incertezas produzidas pelo estilo de confronto adotado pelo governo Bolsonaro. Mas a verdade não vem desse fio, e o problema é mais grave porque contém componentes estruturais.
Sobre o Autor
Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.
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