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Desânimo de pobres e "aula" de recuperação cíclica em reportagem da Folha

José Paulo Kupfer

25/12/2019 17h57

Uma aula prática de economia no meio de uma reportagem publicada na Folha, nesta quarta-feira (25), no dia de Natal. Os repórteres Emilio Sant'Ana e Eduardo Cucolo descrevem o ambiente econômico do momento, na percepção de pobres que trabalham na rua, vendendo bugigangas na porta de shoppings center, em São Paulo.

Um deles, que se apresenta apenas como Luda, de 66 anos, toca clarinete em troca de gorjetas, na frente do Shopping Pátio Higienópolis, que fica num bairro central de São Paulo, com concentração de famílias de classe média alta. Pelo que declara na reportagem, Luda conhece economia melhor do que muito doutor na matéria.

Ele diz funcionar como uma espécie de "barômetro da economia". O termômetro que Luda usa é o de volume de gorjetas que recebe, combinado com o movimento que observa, de ambulantes, entregadores de aplicativos e consumidores do shopping. Um "indicador" importante é o número de pessoas com sacolas de marcas que, saindo do shopping, passam em frente a ele.

Desse posto de observação, ele conclui que o ritmo de recuperação da economia, diferentemente do que proclamam o governo e economistas, principalmente os alinhados, mas também alguns críticos, não está com essa bola toda. Contabilizando as gorjetas recebidas em dezembro até vésperas do Natal, naquele período no qual, segundo projeções de economistas, a atividade econômica avançou para mais de 2% anualizados, ele constata que seu movimento caiu 30%, em relação ao mesmo período do ano passado.

Mas é outra a principal contribuição do clarinetista de rua Luda para o entendimento do tipo de recuperação em curso na economia. Ele explica de um modo muito prático como funciona a "recuperação cíclica", conceito com o qual os especialistas estão justificando a (pequena) aceleração no ritmo da atividade registrada a partir no segundo semestre de 2019, notadamente nos últimos três meses do ano.

Explica Luda, na reportagem da Folha: "mais dia menos dia, as coisas vão melhorar, independentemente das ações do governo". E explica, apontando para roupa que veste enquanto toca seu clarinete sob chuva. "É como esta camiseta. Tenho ela há seis anos. Alguma hora vou ter que trocar, vou ter que gastar com uma nova. Assim é com tudo na economia."

Já são seis anos de recessão brava, com recuperação cíclica muito lenta nos três últimos. Assim como a camisa do clarinetista de rua, o sapato, a geladeira, o celular e o carro de muita gente já está nas últimas e trocar por um novo – ou pelo menos um mais novo – é imperativo.

Esse movimento é facilitado por medidas do governo que injetam recursos na economia. É o caso notório da liberação de dinheiro preso no FGTS. Foi esse dinheiro que levou o PIB (Produto Interno Bruto) de 2018, com previsão de crescimento inferior a 1% antes de a medida entrar em vigor, chegar a 1,3%, na recente revisão promovida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

É também a liberação do FGTS, a partir de setembro de 2019 – e turbinado no fim ano com a possibilidade de saques adicionados em contas com até um salário mínimo de saldo -, juntamente com outros estímulos diretos à demanda anêmica, que pode ter impulsionado as projeções da variação do PIB para o ano, de no máximo 0,8%, no primeiro semestre, para 1,2%, no final de 2019. Juros mais baixos, por exemplo, também estimulam o crédito em modalidades com garantias reais, caso do crédito imobiliário e para a compra de veículos.

A moral dessa história é que, numa trajetória de recuperação cíclica, é preciso cautela na projeção de uma expansão da atividade mais forte e sustentada à frente. Caso essa previsão se apoie apenas numa aceleração que pode ser pontual e se esgotar com o tempo, os riscos de frustração do crescimento, como ocorreu nos últimos três anos, aumentam.

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Sobre o Autor

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

Sobre o Blog

Análises e contextualizações para entender o dia a dia da economia e das políticas econômicas, bem como seus impactos sobre o cotidiano das pessoas, sempre com um olhar independente, social e crítico. Finanças pessoais e outros temas de interesse geral fazem parte do pacote.


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