Visão míope de Bolsonaro sobre efeitos da pandemia deixa país desprotegido
José Paulo Kupfer
24/03/2020 08h00
Enquanto governos de outros países estão destinando entre 10% do PIB e 20% do PIB em recursos para enfrentar os impactos sanitários, sociais e econômicos da pandemia de Covid-19, o governo do presidente Jair Bolsonaro, na prática, ainda não mobilizou muito mais de 2% do PIB com o mesmo objetivo.
A timidez da ação do governo brasileiro não deixa de refletir a convicção de Bolsonaro segundo a qual o surto da doença que tem aterrorizado o mundo não passa de uma "gripezinha", que logo será debelada sem as graves consequências apregoadas. Outra diferença, em relação ao resto do mundo, diz respeito ao tratamento a trabalhadores que possam ser atingidos por colapsos na produção e nas vendas.
Em boa parte dos países, governos estão mobilizando recursos para subsidiar, pelo menos parcialmente, salários de trabalhadores atingidos por redução ou suspensão de jornadas de trabalho. Na alta noite deste domingo (22), uma medida provisória, assinada por Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, permitiu às empresas suspender contratos de trabalho por até quatro meses, sem que fosse oferecida qualquer compensação aos empregados alcançados pelo corte temporário.
A revolta que se espalhou pelas redes sociais, repercutiu no Congresso e fez Bolsonaro anunciar, logo na manhã desta segunda-feira (23), a retirada do artigo da medida provisória que permitia cortar a remuneração do empregado deixando-o sem renda alguma. Mas outros pontos do texto, que altera relações de trabalho por força da crise que Bolsonaro relativiza, também são polêmicos e em geral prejudiciais aos empregados. Para muitos, ficou a impressão de que, mais uma vez, o presidente e seu ministro tentaram pegar carona em algum evento acidental – no caso a grave pandemia da Covid-19 – para atacar direitos trabalhistas.
Mesmo para as empresas, pretensamente favorecidas pela medida provisória, o alcance da MP é curto. Se, de um lado, elas são de fato beneficiadas por alívios temporários no cumprimento de obrigações trabalhistas, de outro, nenhuma rede de proteção para a previsível interrupção abrupta de faturamento foi oferecida.
No resto do mundo, a reação quase imediata foi prover liquidez para mercados, empresas e trabalhadores. A revista "The Economist" estima que, em termos globais, governos estão destinando o equivalente a 2% a 2,5% do PIB mundial a ações de mitigação dos efeitos da pandemia. Isso significa o bombeamento de US$ 2,6 trilhões a US$ 3,25 trilhões no conjunto das economias do planeta.
Só nos Estados Unidos, a previsão é de que seja despejado na economia americana pelo menos metade dos gastos mundiais. Parte desse dinheiro seria usado para enviar pelo menos US$ 1 mil a cada americano. O restante garantiria a sobrevivência de empresas afetadas com a interrupção de seus negócios.
Prover recursos, sem medir consequências fiscais futuras, para manter as empresas e garantir condições de sobrevivência às pessoas tem sido, a palavra de ordem também nos países europeus. Na França, o presidente Emmanoel Macron deu o tom geral: "Nenhuma empresa, do tamanho que for, correrá risco de quebrar por causa do vírus".
Na Alemanha, o governo de Angela Merkel anunciou novo pacote com recursos de até US$ 750 bilhões para enfrentar a crise, elevando o aporte de dinheiro para sustentar pessoas e empresas na crise a enormes 30% do PIB. Do total do novo pacote, US$ 180 bilhões, ou 6% do PIB, foram reservados apenas para proteger pessoas. Mesmo a Espanha, convalescente de longa restrição fiscal, está abrindo as torneiras e destinando cerca de 20% do PIB a medidas de proteção social e econômica contra os efeitos da Covid-19.
Até no Reino do Unido, liderado pelo populista de direita Boris Jonhson, a preocupação com as condições de sobrevivência das pessoas falou mais alto. O governo britânico vai garantir até 80% da remuneração dos trabalhadores de baixa renda que tenha sido afetados por suspensão do contrato de trabalho. Destinará também um montante de US$ 400 milhões a trabalhadores por conta própria
No Brasil, os números são ainda são muito mais modestos. No total, as medidas anunciadas somam pouco mais de R$ 800 bilhões, equivalentes a quase 11,5% do PIB. Parece bastante, mas não é. Na verdade, 75% desse montante se referem a flexibilizações de regras de provisão bancária, permitindo alargar o volume de recursos disponível para empréstimos. A entrada do dinheiro em circulação não é automática e depende do interesse dos bancos em emprestar, das taxas a serem cobradas e de empresas e pessoas desejarem o crédito.
Em dinheiro sonante para valer, na proteção de trabalhadores e empresas contra os efeitos da paralisação dos negócios, o total oferecido pelo governo mal passa de R$ 150 bilhões (US$ 30 bilhões), equivalentes a diminutos 2% do PIB. Para o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), será necessário no mínimo o dobro desse montante para proteger pessoas e empresas.
Pode parecer que a essa timidez tenha a ver com as dificuldades de uma economia emergente, às voltas com graves restrições fiscais. Estará mais perto da verdade, porém, quem considerar que a modéstia do pacote brasileiro para enfrentar a devastação do coronavírus se deve a uma visão míope do governo Bolsonaro a respeito dos desdobramentos sociais e econômicos da pandemia.
Sobre o Autor
Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.
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